O marco fundante do jornalismo colaborativo, no entanto, não veio da grande mídia, mas de um veículo 100% dedicado à produção conjunta entre cidadãos “leigos” e jornalistas: o sul-coreano OhmyNews. Inspirados pela criação do jornalista Oh Yeon-Ho, um sem-número de sites e produtos editoriais se propunham a fazer jornalismo com base na produção de quem — até então — apenas consumia a informação.
Hoje reencontrei este texto do Rodrigo Martins, responsável por quebrar uns bons paradigmas no Estadão e na imprensa brasileira quanto ao jornalismo e às redes sociais. Nas aspas que ele traz de António Granado, então editor do jornal português Público, repensei estes últimos 11 anos:
“Os veículos estão acelerando a criação de canais virtuais para a participação do público. E esse interesse tem dois motivos: ter acesso a relatos únicos de fatos vivenciados pelos leitores e criar uma comunidade em torno do veículo, estreitando a relação com o público.”
Revi os materiais que trabalhei em muitas aulas e palestras sobre o tema. Retomei minha dissertação de mestrado, onde estudei este fenômeno. Revisitei vários daqueles projetos de jornalismo cidadão, muitos através do Internet Archive WebMachine, é verdade. E encontrei um cenário muito, muito distante da realidade que aquela época prometia.
Também do texto do Rodrigo:
“Representantes do Estado, Folha de S. Paulo, Abril, Terra, G1, iG, BBC e CNN faziam coro [no congresso MediaOn, em 2008, no Itaú Cultural de SP] ao defender que se estabeleça mais canais virtuais para o leitor comentar, relatar fatos, protestar, enfim, utilizar a internet para interagir ao invés de apenas consumir conteúdo.”
Montagem de autoria própria (2009)
Uma década depois, raro é o canal de jornalismo cidadão que se mantém ativo. A maior parte durou até 2015, 2017. Se o veículo ainda recebe conteúdo do usuário, é através de WhatsApp. Até aí, segue válido. Mas não vejo aquela necessidade de se “estreitar a relação com o público” cumprida pelos veículos. Tampouco vejo o jornalismo de agora melhor do que naquela ocasião.
Então me transportei para 2005–2007, para entender qual era o pain point da sociedade de então. O Twitter ainda era um bebê e o Orkut instigava o usuário ao lúdico e crescente ócio digital. Havia fotolog e a necessidade de sempre de o ser humano ser visto. O que não havia era alcance, por isso o cidadão enviava o conteúdo para um veículo. Mas também não havia maturidade editorial entre a população.
Pedir conteúdo não é dialogar(!)
“A pessoa pode estar vivendo uma situação de forte interesse jornalístico e não se dar conta de que aquilo tem valor-notícia!” — eu dizia, meio desesperada por um trabalho que tinha que ser feito. Era preciso educar o cidadão: Media literacy, tema de estudos posteriores de Dan Gillmor, autor da bíblia do jornalismo colaborativo: o livro We, the media.
Mais do que visão editorial, notava a premência de se desenvolver uma consciência colaborativa entre os usuários. Acreditei que isso fosse acontecer de forma orgânica, naturalmente, mas com a ajuda de jornalistas. E que, com isso, iríamos finalmente tornar real a tendência apontada por António Granado: estreitar a relação com o público.
Naquelas apresentações antigas, eu propunha que o jornalista assumisse papel de incentivador, de gestor de uma rede de colaboradores. E sempre terminava uma apresentação com a seguinte frase do Dan Gillmor:
“Se os meus leitores souberem mais do que eu — e eu sei que isso é verdade — posso incluí-los no processo de melhorar o nível do meu jornalismo.”
Lamentando, mas sem buscar culpados, hoje vejo que o caminho tomado pela sociedade conectada foi outro.
Dos veículos às redes sociais
Um avião da US Airways pousa no rio Hudson no dia 15 de janeiro de 2009. A usuária Jânis Krüms registra a cena numa foto e posta em seu perfil de Twitter. Ali terminava — ao menos a era de ouro — do jornalismo cidadão.
Por muitos anos acreditei que as redes sociais impulsionariam a participação do usuário nos veículos, mas a verdade é que elas sugaram todo o conteúdo amador, a atenção do público e proveram a projeção midiática que até então faltava ao cidadão-repórter. Entre blogs, Twitter, YouTube, Facebook e Instagram, ele simplesmente não precisa mais de veículos que ampliem o alcance de seus registros.
Neste turning point — que aconteceu por volta de 2010 — , entendi que o fluxo do conteúdo colaborativo havia mudado de direção. Se até então o jornalista pedia relatos ao usuário e esperava o conteúdo chegar através de um formulário no site do veículo, agora era o jornalista que precisaria ir ao encontro do usuário e vasculhar as redes sociais em busca de material noticioso.
Isso de fato aconteceu e ainda acontece. Mas salvo raras exceções, não vejo sentido em tornar notícia aquilo que já foi publicado pelo usuário no mesmíssimo ambiente online. Dizer que fulano disse tal coisa em sua conta de Twitter ou que beltrana publicou tal foto em seu Instagram é de uma redundância e irrelevância extrema! Quem ler aquela “notícia” é porque se interessa pelos personagens, a quem — muito provavelmente — já segue nas redes sociais. A mediação não faz o menor sentido quando a fonte já está em contato direto com o público e o “fato noticioso” ocorre, primeiro, onde as audiências já estão: nas redes sociais.
De repente, de estreitar a relação com o público, vi o jornalista sendo abandonado, até rejeitado pelos cidadãos. E nisso se passou apenas uma década.
Um trabalho pela metade
A saudade bateu quando me dei conta de que o objetivo de nos aproximarmos ao público foi esquecido, substituído pela busca desesperada e legítima por novos modelos de negócio.
Sinto como se nossa indústria tivesse pulado várias casinhas num jogo de tabuleiro, com a ilusão de que chegaríamos mais rápido ao fim da jornada. Só que ao contrário do jogo de tabuleiro, o jornalismo chegar rápido ao fim do jornada pode não significar vencer a partida.
Deixamos a tarefa pela metade. Ao abandonarmos o ideal do jornalismo colaborativo, negligenciamos a necessidade de nos aproximarmos do público para constituir uma comunidade ao redor de nossos veículos. Mas isso, agora, o Facebook já fez.
Partir para a busca de modelos de negócios, sem primeiro nos reconectarmos às bases da nossa existência (o público), é como construir um arranha-céu na areia. Até 2009 íamos bem. O milênio começava com um projeto nobre e sustentável de fazer, dos veículos jornalísticos, um totem de convívio construtivo e necessário à sociedade. Mas os resultados não seriam imediatos. E a urgência não deu lugar ao importante.
Notas para recomeçar
Nos últimos meses tenho ouvido novamente comentários e ideias sobre buscar a participação do usuário no jornalismo. Isso me anima, claro! Mas há que se considerar nossa história recente para que não cometamos os mesmos erros. E para isso, deixo as seguintes perguntas:
- o que esperar do usuário?
- qual a prioridade que suas contribuições terão no veículo?
- haverá um diálogo, mais do que um pedido de conteúdo?
- os jornalistas atuarão como entusiastas da comunidade de colaboradores?
Mas talvez antes dessas perguntas haja outra, ainda mais fundamental:
- quais os pain points dos dias de hoje, entre a população?
(Re)Comecemos pelo lado certo. Olhemos primeiro para as necessidades do público e não às nossas. Investiguemos o que fará as pessoas colaborarem conosco a partir de como funciona a vida delas. E se, para isso, precisarmos ir além da produção de conteúdo como nosso core business, que a função social se cumpra do jeito que fizer mais sentido para o público.


